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Veja galeria de fotos dos soldados na Amazônia e da floresta
"Base, aqui é Onça Uno; informo Papa Três em posição; solicito vôo", comunica o capitão pelo rádio, ainda sem sair da água.
"Positivo Onça Uno; aeronave pronta; aguardando decolagem", responde a base. Agora, é só esperar o avião passar.
A cena se passa nas entranhas da selva amazônica, a duas horas de lancha do 1º Pelotão Especial de Fronteira do Exército, em Iauaretê, bem na garganta da Cabeça do Cachorro, norte do Amazonas, onde o Brasil parece prestes a engolir um pedaço da Colômbia. A linha imaginária da fronteira está perdida em algum lugar no meio do rio. Mesmo em época de seca, não há praias. A floresta tropical se ergue como uma muralha sólida em ambas as margens, ocupando cada centímetro possível de terra.
A pirâmide de alumínio que os soldados instalam dentro do rio é um refletor que será usado para aferir a precisão geográfica das imagens de radar feitas pelos aviões do projeto Cartografia da Amazônia, um grande esforço de mapeamento de áreas remotas da floresta, lançado neste ano pelo governo federal. De volta à base, o ponto de GPS marcado no solo será comparado às coordenadas obtidas do ar, usando os refletores como ponto de referência. Para que os mapas tenham a precisão desejada, as coordenadas medidas pelos soldados e pelo avião devem ser iguais, com uma margem de erro de poucos centímetros.
Os refletores precisam estar em terreno aberto para que possam ser detectados com clareza pelo radar - coisa rara em áreas de floresta densa, como o norte do Amazonas. A plataforma fluvial foi desenvolvida pelas equipes de engenharia do Exército para situações como essa, em que não há clareiras ou praias para acomodar os equipamentos. Outras opções incluem armar os refletores em pedras no meio do rio ou em clareiras já abertas por ribeirinhos. A instrução é não derrubar nenhuma árvore.
A demonstração no Rio Papuri, acompanhada pelo Estado e uma comitiva de três generais, dá uma idéia da dificuldade de mapear a Amazônia. Os refletores não podem ser deixados no campo. Por isso, o deslocamento das tropas no solo precisa ser sincronizado com o plano de vôo das aeronaves em áreas super-remotas da floresta. A logística é dificílima, até mesmo para os padrões do Exército. "É uma verdadeira operação de guerra", diz o diretor Marcelo Lopes, do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), órgão federal que coordena o projeto.
Estradas não existem ou são intransitáveis. Os aeroportos são algumas poucas pistas de terra abertas junto à fronteira e, seja como for, os pelotões não têm aviões nem helicópteros disponíveis em tempo integral para se locomover. Cada hora de vôo e cada litro de combustível precisa ser rateado entre as Forças Armadas e órgãos ambientais, como o Ibama, para todo tipo de missão - desde treinamento de guerra até combate a incêndios e prestação de serviços a comunidades isoladas.
Os rios, que são as verdadeiras estradas da Amazônia, também não são nenhum passeio. Quase sempre possuem trechos de corredeiras que precisam ser vencidos a pé pela mata, carregando tudo - barco, motor, combustível e equipamentos - nas costas. Em outros casos, são tão cheios de curvas e meandros que o tempo de viagem se torna o dobro ou o triplo do que seria em uma linha reta. O mesmo vale para o consumo de combustível, a fome, o calor e o cansaço. As missões de campo para instalação de refletores levam dez dias, em média. "Nada é fácil na Amazônia", resume o general de brigada Pedro Ronalt Vieira, diretor do Serviço Geográfico do Exército.
A Cabeça do Cachorro foi escolhida como ponto de partida para o projeto de mapeamento, previsto para durar cinco anos. Para entender o apelido da região, basta olhar no mapa: a linha da fronteira entre o Brasil e a Colômbia navega por entre rios e paralelos da Bacia do Alto Rio Negro, formando uma figura que lembra o pescoço, as orelhas, o focinho e a boca de um cachorro. Por suas artérias fluem as águas escuras do Rio Uaupés, do Rio Içana e do próprio Negro, conectados por uma infinidade de igarapés. Nos ombros, leva o Pico da Neblina, o ponto mais alto de Brasil, e sua pele é coberta por uma das florestas mais antigas e bem preservadas da Amazônia.
DESCONHECIDO
Por baixo desse manto verde e rugoso, porém, pouco se sabe sobre a anatomia interna da região. A Cabeça do Cachorro fica no chamado "vazio cartográfico", uma área de 1,8 milhão de quilômetros quadrados de floresta que nunca foi devidamente mapeada, formando um "arco de desconhecimento" que se estende do extremo oeste do Acre até o extremo norte do Amapá.
Na prática, isso significa que 35% da Amazônia brasileira (uma área maior do que os sete Estados do Sul e do Sudeste) não possui informações básicas de cartografia, como altimetria de relevo, profundidade de rios e variações de cobertura vegetal - cruciais para o planejamento de defesa, desenvolvimento e pesquisa da região.
No caso de uma hidrelétrica, por exemplo, os engenheiros precisam conhecer em detalhes a topografia para saber como a água vai se espalhar pelo terreno. Da mesma forma, cientistas precisam das informações mais detalhadas possíveis sobre a paisagem para desenvolver modelos ecológicos, estudar a distribuição de espécies e identificar ecossistemas vulneráveis.
"Todo mundo fala em proteger e fazer o desenvolvimento sustentável na Amazônia, mas sem conhecimento não temos como fazer isso", diz o tenente-coronel Clovis Gaboardi, chefe da 4ª Divisão de Levantamento do Exército, em Manaus.
Os mapas produzidos pelo projeto serão os mais detalhados já feitos para a Amazônia. As tecnologias de radar utilizadas nos aviões permitem "enxergar" através das nuvens e das copa das árvores até o chão da floresta - diferentemente das imagens óticas de satélite, que só enxergam superfícies expostas e são bloqueadas por nuvens, o que impede a visualização da floresta durante longos períodos.
"Muita gente olha do alto e acha que a Amazônia é uma planície coberta de floresta. Mas não é. Por baixo das árvores, o relevo varia muito", diz o general Armindo Fernandes, consultor técnico da empresa OrbiSat e gerente geral do projeto. "Quem anda por lá sabe disso."
O ornitólogo Mario Cohn-Raft que o diga. Um experiente pesquisador de pássaros amazônicos, com muitos quilômetros de selva no currículo, ele utiliza rotineiramente mapas e imagens de satélite para planejar seus trabalhos de campo. Mas se dependesse só dos mapas, ele nunca teria chegado a lugares como a Serra do Aracá: uma formação de tabuleiros e montanhas na divisa com a Venezuela, com picos que chegam a quase 2 mil metros de altura. "No Google Earth dá para ver a serra, mas no mapa, ela não aparece. É como se não existisse", conta Cohn-Raft, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus. "Se eles fizerem mesmo esse mapeamento, será uma ferramenta fantástica."